domingo, 8 de junho de 2014

Unidade da Igreja e diversidade religiosa


Durante a semana que antecede a Festa de Pentecostes segundo calendário litúrgico católico temos a Semana de oração pela unidade dos cristãos, com a intenção de orar, rezar, mentalizar sobre a unidade de paz e prosperidade entre as comunidades religiosas cristãs do mundo inteiro.
No entanto, vimos por esses dias uma enorme contradição entre os adeptos deste grupo que apregoa a paz conforme os ensinamentos evangélicos. No interior da Paraíba, só para exemplificarmos, vimos que um líder cristão – justamente nos dias que antecederam a Solenidade da vinda do Espírito Santo – incitou um grupo de religiosos de sua denominação a utilizarem crianças para a disseminação do preconceito sob a forma de violência contra símbolos religiosos do cristianismo católico demonizando-os e fomentando a barbárie em defesa de sua interpretação bíblica.

Os esforços para uma cultura de paz nos parecem cada vez mais distantes quando vemos tais práticas no seio cristão. Porém, nada há quem nos separe do amor de Deus, conforme nos indica Paulo em sua encíclica aos romanos: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? (Rm 8, 35). Por isso, somos convidados a meditar mais profundamente na ação do Espírito Santo na vida das nossas comunidades cristãs eclesiais; e encontrar um meio de coabitar de maneira mais eclesiogênica, isto é, nascida na unidade.


É a unidade da Igreja, querida – alvejada – por Jesus em sua oração sacerdotal (cf. Jo 17), que nos faz pensar acerca de nossas atitudes frente aos irmãos que professam credo diferente do nosso. Estamos sendo “UM” para que o mundo creia? Será que devemos tolerar o outro? Não creio! Digo, não devemos tolerar, todavia, suportar, ou seja, dar suporte ao outro para que cresçamos na unidade.

Quando dizemos que alguém tem prática diferente da nossa, logo dizemos que “fulano não fala a nossa língua”, isto é, não nos entendemos, não importando o quanto se discurse sobre isso. Tal incompreensão do outro está contida no simbolismo das línguas descrito no Gênesis, ao passo que, as línguas presentes nos Atos denotam característica inversamente proporcional. Naquele ninguém se entendia, mas neste “Como é que cada um de nós os ouve em sua própria língua materna?” (At 2, 8). O milagre possivelmente está nos ouvintes que se abriram para acolher a mensagem de unidade ofertada pelos apóstolos naquele quinquagésimo dia após vigílias de oração. O fogo que viera sob os que permaneceram unidos em oração se apresenta como que formas de línguas.


O fogo toma esta forma talvez para significar esta nova visão das línguas que tem a finalidade de unir os homens numa mesma fé e não de os separar com aquela divisão das línguas ( cf. Gn 11, 1-9).

De fato, “existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo” (1 Cor 12, 4); Pertence à essência da vida da Igreja haver sempre, diversidade de dons espirituais (carismas), ministérios e operações. Toda esta diversidade e variedade de dons procede da unidade divina e concorre para que a unidade da Igreja – um só Corpo – seja mais rica. E é nesse espírito que devemos auscultar em nossos corações e, assim, guardar a mensagem que somos diferentes, mas um só é o espírito de caridade, de luz, de sabedoria e entendimento, frente à diversidade religiosa, que nos fomenta à unidade própria da Eclésia em seu impulso inicial dado em Pentecostes – hoje.

sábado, 7 de junho de 2014

Tá lá o corpo estendido no chão


Muitos de nós, talvez, estamos tão cheios de nossas preocupações ou distrações que não nos apercebemos ao meio de nossa convivência humana.
Uma das circunstâncias que chama a nossa atenção está ligada diretamente à noção de segurança que temos em nosso país de um modo geral. Mas não faço aqui uma alusão tão somente aos níveis de criminalidade, postos inclusive entre os maiores do mundo em questão de homicídios, dos quais três das nossas cidades figuram no ranque, nada privilegiado, das dez mais do mundo, segundo recente pesquisa da ONU.
A violência contra a vida está marcante em nosso país. Conforme a definição de homicídio, encontrada em dicionários linguísticos de nossa pátria, podemos até imaginar como esta questão vem sendo tratada; porém, não por sua definição em si, ou seja, a morte de uma pessoa praticada por outrem, mas no modo como a tratamos no decorrer dos anos.
A violência contra a vida humana tanto se nos apresenta ao ponto de parecer que nós nos acostumamos com ela – num certo sentido. Passamos do medo da barbárie ao silêncio do nosso egoísmo. Só percebemos que este exercício da brutalidade está bem perto de nós quando vemos cair aos nossos pés um ente querido, um irmão. Fora isso não se dá importância a tantos outros que caem todos os dias nas ruas de nossas cidades. Pais e mães, tios, irmãos sofrem a cada dia com a perda de um dos seus para a criminalidade.
O fratricídio cometido por Caim
Muitos há quem se pergunte: “Mas esse problema é meu?” Depende do ponto de vista que você tem da vida e dos outros...
João Bosco, músico popular brasileiro, num excerto de sua obra diz como tantos de nós vemos o nosso semelhante, vide: Tá lá o corpo/ estendido no chão / em vez de rosto uma foto / de um gol/ em vez de reza / uma praga de alguém / e um silêncio / servindo de amém.
Então, o que nos torna tão egoístas ao ponto de silenciarmos frente à dor de outrem? Quem sabe se não podemos tratar o sofrimento daquele como alguém mais próximo de nós, ou seja, tratá-los como irmão – frater, em latim. E é aqui que queremos indicar como as nossas relações de alteridade poderiam ser estabelecidas. Ao invés de tratar o abatido como mais um homicídio na conta do governo, e até praguejar sobre seu corpo ferido, o tratássemos como a um irmão.
Não obstante, o fato de o termo ser comumente usual entre os cristãos, este evoca a posição exigente de atenção para com o outro, o tornando mais próximo. Talvez soe mais urgente se tomarmos aquele substantivo referido ao crime contra a vida, por fratricídio do contíguo.
Não queremos, pois, pregar uma doutrina religiosa, mas tão só um modo de ver o outro na possibilidade de causar em nós um insight de que eles, os abatidos pela violência, são desse modo, nosso próximo, nosso irmão.
Não fechemos nossa janela de frente pro crime!

Tá lá o corpo estendido no chão... O que fazer agora com o nosso irmão? Sermos indiferentes? Não diga amém com seu silêncio.

domingo, 1 de junho de 2014

A sentença nietzschiana: Deus está morto (PARTE 2)

Certamente é por isso que o louco é mal compreendido, mesmo por aqueles que não creem em Deus; e de forma alguma tiram disto as conseqüências que o ateísmo traz e, preferem assim, continuar a viver como se a notícia da “morte de Deus” não se lhes tivessem chegado aos ouvidos, a nós. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens” (NIETZSCHE). A esta sentença devastadora, o mundo supra-sensível fica sem força de atuação. Se “Deus está morto”, então não resta mais nada em que o homem possa se apoiar e a que ele possa se direcionar. Com a consciência de que Deus está morto o niilista inicia seu ponto basilar para uma transvaloração radical dos valores supremos que se vivenciou até aqui.

Se Deus está morto enquanto o fundamento supra-sensível e     enquanto a meta de todo real, se o mundo supra-sensível das ideias perdeu sua força imperativa e antes de tudo sua força evocadora e construtora, então não resta mais nada, junto a quem o homem possa  se manter e em direção a que ele possa se direcionar (HEIDEGGER).
Martin Heidegger,
filósofo alemão

Portanto, com essa leitura de Heidegger, vemos que o “Deus está morto” de Nietzsche é intrínseco ao modo de compreensão do niilismo dada pelo próprio filósofo. À busca infrutífera daquele que gritava: “Procuro Deus! Procuro Deus!”, seguida da incompreensão dos homens, oferecem-nos a interpretação  na qual o acontecimento histórico em que a derrocada de  Deus e o aparecimento do niilismo é um fato que se chagara prematuramente. Conseqüentemente, a morte de Deus é um fato que ainda está acontecendo a nós.
 Há, contudo, duas maneiras de ateísmo – provavelmente encontradas pelo louco do aforismo 125: uma delas é o não crer em Deus, a outra, crer que ele não existe. Essas duas maneiras de ateísmo podem ser confirmadas no pensamento de André Comte-Sponville (1952) em seu Dicionário Filosófico. Segundo este, no primeiro caso, temos uma ausência de crença (ausência de Deus) que ele define como “ateísmo negativo”; já no segundo caso, temos uma crença numa ausência (negação de Deus), posição que o filósofo classifica de “ateísmo positivo”, ou mesmo “militante”. Nietzsche, porém, proclama que ele morreu: nós o matamos – vocês e eu. A “morte de Deus” é expressão máxima do ateísmo niilista por Nietzsche, visto que sem o qual, não poderá haver “a transmutação de todos os valores” – um niilismo.

               
Nietzsche previu grandes marasmos em seu século e até hoje, um grande declínio, após o desatar a terra de seu sol metafísico, até então considerado o pólo a ser atingido; como também a derrocada dos valores platônicos e cristãos no apagar o horizonte. Com isso, coloca-se o homem perto do nada, vitimado pelo niilismo. Os valores ora cultuados durante séculos desabaram, haja vista a notícia da morte de Deus. O mundo soava oco e a absurdo. Assim, Nietzsche antevê a terríveis conseqüências, os grandes cataclismos e desabamentos, que se seguiram à “morte de Deus”:


O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. [...] Essa longa e abundante seqüência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo, que agora é iminente: quem poderia hoje adivinhar o bastante acerca dela para ter de servir de professor e prenunciador de uma tremenda lógica de horrores, de profeta de um eclipse e ensombrecimento solar, tal como provavelmente jamais houve na Terra?... (NIETZSCHE).

É, pois, este, o ponto culminante no processo de dessacralização dos ideais ascéticos, da descritianização do ocidente, isto é, o maior acontecimento recente  – o fato de que “Deus está morto”. Portanto, ao pregar este necessário assassinato, a saber, “a morte de Deus” Nietzsche defende que, só a partir disto, é que os homens se libertarão dos ideais quiméricos. É, portanto, esse acontecimento que vem trazer para nós, a maturidade e o deslocamento do eixo interpretativo de toda vontade de verdade para a vontade de potência e nada mais. É o fim do fundamento ontológico das coisas, condicionando um ateísmo plenificado, pois Deus está morto – eis o grande acontecimento!

Conquanto Nietzsche compreende em seu próprio pensamento que a doutrina da vontade de poder principia, portanto, “uma nova instauração de valores”, no sentido de um niilismo plenificado – consumado. A vontade de poder transforma-se em origem e medida de uma nova valoração. Portanto, o tomar consciência de que “Deus está morto” é passo impreterível para a radical transvaloração dos valores supremos até aqui.
O derradeiro passo após a instauração de uma consciência de transvaloração é, senão, uma nova história mais elevada em que o princípio de toda avaliação é levada a termo na Vontade de Poder, pois, “o niilismo ‘da desvaloração dos valores supremos’ [do ateísmo até aqui vigente] foi superado” (HEIDEGGER). Com isso, a humanidade quer o seu próprio ser-humano visto a partir da Vontade de Poder. Um homem que se configure enquanto pertencente à sua vontade mesma – que se projete para além do homem até aqui visto. Decerto, ele virá, o homem redentor – do grande amor e do grande desprezo – e nos impulsionará a transcender toda a nossa insignificância.


Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticistão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem que vir um dia...
 – Mas que estou eu a dizer? Basta! Basta! Nesse ponto não devo senão calar: caso contrário estaria me arrogando o que somente a um mais jovem se consente, a um “mais futuro”, um mais forte do que eu – o que tão-só a Zaratustra se consente, a Zaratustra, o ateu... (NIETZSCHE)
Nietzsche fala o Zaratustra

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Idade Média, Idade das Trevas. Será?


Mil anos de história! Esse é o tempo em que podemos esquadrinhar o período medieval comumente aceito entre os historiadores. E o que podemos dizer desse longo período de nossa história ocidental?
Temos, entre nós, um conceito pré-estabelecido desse período devido à maneira como, muitos de nós, aprendemos na escola, ou seja, uma aprendizagem em que coloca o medievo como um período prejudicial às ciências técnicas ou até mesmo que deva ser esquecido, devido ao teocentrismo vigente nessa época. Porém, talvez o caro leitor esteja usando uma das invenções dessa era que é tida como negra por alguns para melhor ler estas palavras, a saber, os óculos. Este criado pó um membro do clero e pertencente
Óculos: uma invenção Medieval 
à Ordem dos Pregadores (Dominicanos), Giordano de Pisa. No entanto, não quis compartilhar os segredos de tão grande invento; Sendo copiado, só pela observação, por um confrade que de imediato ensinou aos outros monges. Ou ainda tem sobre a mesa um livro de Aristóteles ou as Sagradas Escrituras que chegou até nós graças ao trabalho árduo de um copista. Ou ainda vislumbrou belas igrejas e conventos, a exemplo dos deixados pelos frades franciscanos, e Mosteiros Beneditinos presentes na Paraíba e em Pernambuco.
Monge copista
Mas não só de mosteiros se compreende esse milênio ocidental. Assim, um conceito bastante caro para a compreensão da Idade Média, frente ao conceito pejorativo de trevas, é o feudalismo, isto é, um modo de produção econômico-político-social predominante entre os séculos V ao XV.
É uma sociedade complexa, e o mínimo de preconceito pode inviabilizar sua compreensão de modo satisfatório.
Como sociedade, as várias atividades político-econômicas tinham uma característica marcante, inclusive com rastros de semelhanças desses modos de convivência encontrados no nordeste de nosso país.
Servos trabalhando na colheita
de trigo (começo do século XIV)
A relação entre o senhor e seus servos não se pode ponderar aos modos das relações trabalhistas atuais; pois aquele tinha uma ligação de serviço e de guarda com estes. O feudo era o lugar onde tudo se produzia. Dentre as formas de relações está o comitatus que é uma relação da sociedade feudal entre o suserano e o vassalo baseado na honra e lealdade; onde a economia agrária e autossuficiente de subsistência regia o controle da gleba do senhor através do rodízio no uso destas. Como também era usual a prática da talha, corveia e banalidades configuravam as principais obrigações dos servos na época do feudalismo, ou seja, um modo de vida em que os servos estavam presos às terras dos senhores feudais e mesmo os camponeses e vilões proprietários de terras tinham com o senhor feudal. Muito diferente da economia de caça dos séculos anteriores ao medievo; um avanço no processo de estabilidade da vida num espaço de terra.
E é em busca de terra e de fieis que a maior força existente da época dá início a uma nova página, sangrenta, mas sob a Cruz da fé Católica e o tremular das bandeiras militares da cavalaria sob a unção divina. Um dos pontos marcantes e que evoca decerto o nosso tema, as cruzadas.
Papa Urbano II enviando cavaleiros
 para a Cruzada
Em 1905 o papa Urbano II convocou tais expedições com o intuito de retomar a Terra Santa dos muçulmanos. Todavia, a Igreja não era a única interessada no êxito dessas expedições: os nobres feudais tinham interesse na conquista de novas terras. Dos castelos, que eram mais uma fortificação militar a um encantamento romântico, os Bispos da Igreja através de uma benção aos cavaleiros e suas armaduras repletas de rituais de investidura, enviavam suas tropas com o juramento de lutar pelo Reino da Igreja que é a glória do Reino de Deus.
Foi com Carlos Magno em 768, que a dinastia carolíngia alcançou o apogeu da dominação dos bárbaros francos. Na formação do império organiza os domínios imperiais em condados geridos por um nobre e um bispo. Essa administração de governos locais sob um único comando imperial ia de encontro ao processo de descentralização política que marcou toda a Europa Medieval. Entretanto, sob o aspecto econômico o império contou com várias feiras e pequenos comércios nos novos centros urbanos. Com esse cenário de crescimento, esse período ficou conhecido como “renascimento carolíngio” devido às várias igrejas construídas e obras de escritores Greco-romanos traduzidas e a ourivesaria devido à sua paixão pelas artes. Um brilho na ascensão medieval da sociedade europeia.

 Desse modo, tentamos aqui expor alguns fatos desse período para que o nosso leitor, mais atento aos acontecimentos histórico-sociais, busque um aprofundamento maior sobre o tema proposto e tire suas conclusões daquele que fora considerado um tempo improdutivo ou negro para o avanço da sociedade ocidental. Será que devemos algo a esse período? Se olharmos à nossa volta, ao fim deste texto, e analisarmos se algo nos evoca àqueles séculos, teremos, de certo, uma resposta à indagação titular proposta; Pois, parafraseando um texto copiado nessa época, nem só de trevas vive a Idade Média, mas de toda boa invenção e belas obras.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A sentença nietzschiana: Deus está morto (PARTE 1)

“O seguinte esclarecimento [da sentença nietzschiana ‘Deus está morto’] procura indicar o ponto a partir do qual, talvez, possa vir a ser colocado um dia a pergunta sobre a essência do niilismo”. (HEIDEGGER)

É, pois, com essa afirmação que a leitura heideggeriana de Nietzsche se nos apresenta nas primeiras linhas de seu escrito – que ora nos inspirou a presente temática –, a saber, a sentença nietzschiana: Deus está morto. A interpretação, todavia, de Heidegger sobre Nietzsche comporta uma acertada reflexão acerca dos textos nietzschianos, e, interpela aos seus leitores com a análise da aparentemente simples sentença “Deus está morto” o cerne do niilismo.

O aspecto da morte de Deus abrirá à nossa reflexão a possibilidade de compreensão deste movimento histórico que se tornou um dos símbolos da filosofia de Nietzsche. Assim, com pronunciamento da morte de Deus, os valores últimos não se estabilizam mais; e sob o sinal da ausência de Deus, o niilismo surge como nomenclatura para tal fenômeno, que se inicia no século XIX, transpassando todo o período seguinte até nossos dias. Contudo, isso decorre do fato de que a sentença nietzschiana denomina o destino final de dois mil anos de história dos valores ocidentais.

Nietzsche expressou a sentença da morte de Deus pela primeira vez em sua obra A gaia ciência (1882). Com este escrito começa o caminho do niilismo propriamente pensado por Nietzsche, ou seja, a morte de Deus na desvaloração dos valores supremos. No entanto, numa anotação para a elaboração de seu primeiro escrito, O nascimento da tragédia (1872), pode-se constatar que o pensamento da morte de Deus já se apresentava em seu gérmen; posto que essa ideia já estava na intenção do jovem alemão. Assim, lemos: “Eu acredito na sentença originalmente germânica: todos os deuses precisam morrer” (NIETZSCHE). 

Não obstante, é, de fato, em A gaia ciência que a idiossincrasia nietzschiana frente à temática “Deus está morto” revela-se propriamente na intenção da morte do Deus ocidental – o Deus cristão. Porém, essa investida contra o Crucificado, não encerra uma crítica às práticas da religiosidade cristã tão somente, mas a toda representação dos ideais supra-sensíveis na história de dois mil anos, e na qual os homens foram submetidos; e seus valores moldados a partir desse valor supremo: Deus.

Na obra supra citada, mais precisamente no aforismo 125, podemos conferir um texto que é freqüentemente utilizado para a reflexão do temo em uso; e no qual podemos constatar que o homem desvairado diz a notícia da morte de Deus. Vale, portanto, observarmos o texto completo desse aforismo intitulado “o homem louco”. Vide:


O homem louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar intensamente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar: “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu! Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ele agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manha? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca ouve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisam de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!” – Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE)

Ora, com a desvaloração dos valores supremos em Deus, sentenciada por Nietzsche, os homens vêem-se carecidos de finalidade para a sua existência; e, por conseguinte, a vida torna-se sem sentido. “A sentença ‘Deus está morto’ significa: o mundo supra-sensível está sem força de atuação. Ele não fomenta mais vida alguma”, diz Heidegger. Destarte, podemos conferir essa ideia de um mundo; de um mundo que não vige mais força alguma, presente no Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo (1888).

Nietzsche ao gritar a morte de Deus, nos lábios daquele louco declara ser ele mesmo incompreendido – acaso não estaria o próprio Nietzsche a nos interpelar? A imagem do homem que possuía uma lâmpada e “procura Deus” em pleno dia evoca, decerto, a figura do filósofo cínico Diógenes (404 ou 412 a.C.) que procurava “um homem” nas mesmas situações do desvirado de Nietzsche.
Com isso, podemos perceber que o vaticínio da sentença nietzschiana encera a necessária adesão por parte de todos a si mesmos; cada qual é o assassino de Deus, pois. Deste modo, o Deus que morre não é apenas o Deus dos sacerdotes, mas também o deus dos filósofos que, mesmo não acreditando no Deus dos ritos e superstições, percebem-se também sem o princípio ordenador do cosmo – e que assegura um sentido ao universo. Com isso, o homem desvairado que grita “Deus está morto”, é incompreendido; mesmo entre os ateus por destruir todo e qualquer sentido ao mundo supra-sensível quanto ao sensível. Por isso, ele mesmo, o “louco”, acredita que o seu tempo ainda não chegou, isto é, o anúncio da morte de Deus não se estabeleceu no seio de seus contemporâneos.

(Continua...)

domingo, 2 de março de 2014

Os eclesiásticos e a sala de aula: uma realidade possível (!?)

No decorrer dos séculos a prática do ensino na sala de aula se tornou cada vez mais uma atividade puramente laicizada em referência à sua origem entre os eclesiásticos que encetaram o ensino universitário como conhecemos hoje.
Inácio de Sousa Rolim,
natural de Cajazeiras (1800-1899),
sacerdote católico e educador brasileiro
Os eclesiásticos sempre foram os pioneiros do ensino para a formação do homem ocidental da era cristã. Exemplos não faltam: Ambrósio, Agostinho, Abelardo, Tomás de Aquino; mais próximos de nós: Pe. Rolim, Pe. Ibiapina, Mons. Trindade... Só para citar alguns. Foram estes os responsáveis em transmitir o conhecimento que ora receberam, e que se empenharam em propagar a prática do ensino. São os catedráticos do saber! Os ícones para todo magistrado. Contudo o amor ao ensino parece-nos esvair-se do seio eclesial, limitando-se apenas aos púlpitos de nossas igrejas que, de certo, também constituem um lugar do ensinamento. Mas este sacro ambiente, de igual modo, exige do mestre um laborioso empenho para o ensino, consoante a dignidade do espaço.
Não sem motivo parece-nos preocupante que boa parte dos eclesiásticos atualmente se abstenha da prática do ensino na sala de aula, apesar de o Sagrado Concílio afirmar que "dentre todos os recursos educativos, possui a escola importância peculiar" (GE, 5). Portanto, essa realidade, onde se efetua a transmissão de conhecimento, vem sendo rechaçada por alguns que certamente não se inspiraram nos iniciadores do ensino escolar.
Aula na Universidade de Paris
durante a Idade Média
Não obstante, muitos dos clérigos, que após receberem primorosa formação intelectual, mantêm-se inoperantes na produção do conhecimento, outros, ao contrário, mostram-se empenhados no amor ao ensino. Todavia, por vezes, alguns procuram apenas manter a posição de receptores, buscando somente confluir ao corpo discente universitário, e dessa forma, não assumindo o magistrado. Portanto, caros colegas, os anos de formação intelectual que os eclesiásticos são submetidos devem ser transmitidos, pois, "isso que vimos e ouvimos (na sala de aula) nós vos anunciamos [...]" (cf. 1Jo 1, 3a), para que a formação adquirida produza o fruto para o qual é ensinada. Com isso, não queremos, entretanto, afirmar o ensino escolar em detrimento da prática religiosa que caracteriza os sacerdotes, mas, queremos incitar a reflexão acerca do ensino acadêmico entre os que, outrora, propuseram tal prática.
Portanto, fica para nós refletirmos sobre a realidade da sala de aula entre os religiosos, visto que, no nosso entendimento, diploma no escaninho é alimento para traça e não possibilidade de produzir e passar conhecimento. Assim, cabe-nos fomentar o exercício do ensino acadêmico e julgar se a realidade dos eclesiásticos e a sala de aula são condizentes no atual contexto de ensino.