sexta-feira, 11 de abril de 2014

A sentença nietzschiana: Deus está morto (PARTE 1)

“O seguinte esclarecimento [da sentença nietzschiana ‘Deus está morto’] procura indicar o ponto a partir do qual, talvez, possa vir a ser colocado um dia a pergunta sobre a essência do niilismo”. (HEIDEGGER)

É, pois, com essa afirmação que a leitura heideggeriana de Nietzsche se nos apresenta nas primeiras linhas de seu escrito – que ora nos inspirou a presente temática –, a saber, a sentença nietzschiana: Deus está morto. A interpretação, todavia, de Heidegger sobre Nietzsche comporta uma acertada reflexão acerca dos textos nietzschianos, e, interpela aos seus leitores com a análise da aparentemente simples sentença “Deus está morto” o cerne do niilismo.

O aspecto da morte de Deus abrirá à nossa reflexão a possibilidade de compreensão deste movimento histórico que se tornou um dos símbolos da filosofia de Nietzsche. Assim, com pronunciamento da morte de Deus, os valores últimos não se estabilizam mais; e sob o sinal da ausência de Deus, o niilismo surge como nomenclatura para tal fenômeno, que se inicia no século XIX, transpassando todo o período seguinte até nossos dias. Contudo, isso decorre do fato de que a sentença nietzschiana denomina o destino final de dois mil anos de história dos valores ocidentais.

Nietzsche expressou a sentença da morte de Deus pela primeira vez em sua obra A gaia ciência (1882). Com este escrito começa o caminho do niilismo propriamente pensado por Nietzsche, ou seja, a morte de Deus na desvaloração dos valores supremos. No entanto, numa anotação para a elaboração de seu primeiro escrito, O nascimento da tragédia (1872), pode-se constatar que o pensamento da morte de Deus já se apresentava em seu gérmen; posto que essa ideia já estava na intenção do jovem alemão. Assim, lemos: “Eu acredito na sentença originalmente germânica: todos os deuses precisam morrer” (NIETZSCHE). 

Não obstante, é, de fato, em A gaia ciência que a idiossincrasia nietzschiana frente à temática “Deus está morto” revela-se propriamente na intenção da morte do Deus ocidental – o Deus cristão. Porém, essa investida contra o Crucificado, não encerra uma crítica às práticas da religiosidade cristã tão somente, mas a toda representação dos ideais supra-sensíveis na história de dois mil anos, e na qual os homens foram submetidos; e seus valores moldados a partir desse valor supremo: Deus.

Na obra supra citada, mais precisamente no aforismo 125, podemos conferir um texto que é freqüentemente utilizado para a reflexão do temo em uso; e no qual podemos constatar que o homem desvairado diz a notícia da morte de Deus. Vale, portanto, observarmos o texto completo desse aforismo intitulado “o homem louco”. Vide:


O homem louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar intensamente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar: “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu! Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ele agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manha? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca ouve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisam de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!” – Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?” (NIETZSCHE)

Ora, com a desvaloração dos valores supremos em Deus, sentenciada por Nietzsche, os homens vêem-se carecidos de finalidade para a sua existência; e, por conseguinte, a vida torna-se sem sentido. “A sentença ‘Deus está morto’ significa: o mundo supra-sensível está sem força de atuação. Ele não fomenta mais vida alguma”, diz Heidegger. Destarte, podemos conferir essa ideia de um mundo; de um mundo que não vige mais força alguma, presente no Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo (1888).

Nietzsche ao gritar a morte de Deus, nos lábios daquele louco declara ser ele mesmo incompreendido – acaso não estaria o próprio Nietzsche a nos interpelar? A imagem do homem que possuía uma lâmpada e “procura Deus” em pleno dia evoca, decerto, a figura do filósofo cínico Diógenes (404 ou 412 a.C.) que procurava “um homem” nas mesmas situações do desvirado de Nietzsche.
Com isso, podemos perceber que o vaticínio da sentença nietzschiana encera a necessária adesão por parte de todos a si mesmos; cada qual é o assassino de Deus, pois. Deste modo, o Deus que morre não é apenas o Deus dos sacerdotes, mas também o deus dos filósofos que, mesmo não acreditando no Deus dos ritos e superstições, percebem-se também sem o princípio ordenador do cosmo – e que assegura um sentido ao universo. Com isso, o homem desvairado que grita “Deus está morto”, é incompreendido; mesmo entre os ateus por destruir todo e qualquer sentido ao mundo supra-sensível quanto ao sensível. Por isso, ele mesmo, o “louco”, acredita que o seu tempo ainda não chegou, isto é, o anúncio da morte de Deus não se estabeleceu no seio de seus contemporâneos.

(Continua...)